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Poemas inéditos
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
segunda-feira, 14 de agosto de 2023
S. Joãozinho
Entre incensos de churrasco
e foguetes de cerveja,
no alto do seu andor
S. Joãozinho boceja.
Começa a falar sozinho,
ali parado ao calor,
à espera da procissão:
"Então, isto arranca ou não?"...
A seu lado o bom cordeiro,
seu perfeito companheiro,
sorri, calado e suave.
"Que cordeiro mais borrego
nem sequer responder sabe!!"
irrita-se o S. João.
Não terá jamais sossego
nem que o caruncho se acabe,
e a culpa é da procissão.
"Então, isto arranca ou não?..."
domingo, 15 de maio de 2022
Da rua do Convento ao Bairro Novo
Pela Rua do Convento
sobem as velhas para a missa,
cada pêlo uma vibrissa,
saliva aos cantos da beiça,
salve-rainhas em pingo,
às dez da manhã, domingo.
A minha avó tem pena delas.
As Ornelas foram ricas,
as Barrosão ainda o são,
a mais baixinha ensina
a doutrina às crianças.
Nenhuma das três Parrancas
casou. Mas muito pior ficou
a Berta Araújo cujo
marido fugiu com outra.
Sabe-se lá se ela passa
necessidades.
As velhas ficam para trás,
a papar missas
e terços de mistério
em mistério,
não vão como nós
ao Bairro Novo,
à pastelaria Império
à procura dum bolo furado
por chantili cor de rosa.
Eu como o bolo
e a minha avó paga,
engolindo em seco de felicidade.
Outra versão:
Vão à nossa frente as Seixas
com as beiças a escorrer
salve-rainhas em pingo
porque é outra vez domingo.
A minha avó chama-lhes
"raparigas do meu tempo."
Embicam para o convento,
sobem a custo as escadas.
Bem nascidas, mal fadadas,
coitaditas, com bigodes
frisados à rei Herodes,
missais, malinhas de mão...
A mais velha já foi rica
e a outra já foi bonita,
casada com um capitão
dos barcos do bacalhau.
Upa degrau a degrau
para o alto onde se alcança
toda a bem-aventurança.
Quanto à minha avó e eu,
aceleramos, vamos
ao Bairro Novo que é dia
de pastelaria Império
com bolo de creme rosa,
poesia sobre prosa.
O sabor do seu corante
lambido pela rua fora
ainda me dura agora.
sábado, 10 de julho de 2021
Ponte romana de Góis
Ponte velha da Cabreira
onde as cabras velhas vão
na Páscoa por devoção
marchar em fila indiana
(e há sempre uma que lá fica
reservada para chanfana).
Ponte velha da Cabreira,
sobre o rio Ceira, em Góis,
passam os bois dois a dois
e os borregos seis a seis,
a caminho de Coimbra
para serem doutores em Leis.
Vão pisando as lajes gastas,
uma a uma até ao fim,
e quando alcançam a estrada
já sabem falar Latim!
A foto é da minha amiga Teresa Relva, o menino é o seu neto Charles.
Blog This and That (relvateresa.blogspot.com)
segunda-feira, 5 de julho de 2021
O bote inflável
Pintei-o na parede da minha cozinha. 74x70
terça-feira, 25 de maio de 2021
Tigre triste
Maio 2021.
Ao procurar uma ilustração para o poema Na Terra dos Tigres, deparei-me com este tigre emoldurado. Lembrou-me de imediato a minha mãe, que uns dias antes tinha sofrido de alucinações visuais causadas pela perda de visão (síndrome de Charles Bonnet). Este poema é pois dedicado à minha mãe.
só olha em frente à procura
da saída para o passado.
Finge avançar como dantes
mas cola as patas ao chão.
de nenhures para nenhum lado
como o tempo emoldurado.
Jan. 2022
Oito meses depois das primeiras alucinações visuais, a minha mãe já aprendeu a lidar com elas. Diz que não pode dar-lhes confiança. Se acontecem de noite, levanta-se, vai à janela ou então à cozinha beber água; se acontecem de dia, ela inicia uma nova actividade -- melhor ainda, sai de casa, pois fora de casa as alucinações nunca ocorrem.
Ultimamente tem recomeçado a tomar notas no seu caderno diário: saúde, pequenas despesas, telefonemas recebidos, coisas assim. Para conseguir dominar o varrimento da vista, usa grossas linhas pautadas. A tarefa leva-lhe muito tempo, à luz branca fortíssima do candeeiro de mesa.
17 Jul. 2023
13 janeiro 2024
Corrigi mais uma vez o poema "Tigre".
Agora as alucinações da D. Crespo tornaram-se raras. Ela não ousa falar em melhoria. Pode dar azar.
16 para 17 fevereiro- Noite com visões incessantes, "disparates". "Já não sabia o que fazer".
18 fevereiro 2024
No jardim do lar, num intervalo da passeata entre canteiros, a minha mãe tem uma "coisa boa" para me contar: esta madrugada conseguiu ler notícias de jornais, escritas na parede do quarto. Leu-as "nitidamente". Lembra-se por exemplo da palavra "estudantes".
-- Fiquei tão feliz que nem imaginas.
Tenho pena de a desiludir:
-- Mãe, não há jornais na parede do teu quarto...
Ela apercebe-se imediatamente do seu logro.
-- É o teu cérebro a querer consolar-te, é como nos sonhos, mãe, como quando tu ou eu sonhamos com a avó viva.
-- Sonho tantas vezes -- diz ela.
Combinamos que ela não falará a ninguém das suas visões e sonhos, para não correr o risco de a julgarem senil. De mãos dadas, sentimo-nos protegidas por Charles Bonnet, o misericordioso, que inventou um síndrome para nós.
De novo ela passeia entre os canteiros -- e nos intervalos estuda comigo a Balada da Neve, quase rememorizada, após 85 anos de inatividade. Quando não se lembra das palavras exatas, a D. Crespo substitui-as por sinónimos, sem se deixar guiar pela rima. Chamo-lhe sua grande batoteira.
De regresso ao quarto, quer experimentar se consegue ler. Dou-lhe uma embalagem de Halibut. Em várias tentativas, acerta duas letras maiúsculas. Desiste.
- Olhe dona, digo-lhe eu, a senhora conduz o seu Ferrari, anda por aí, faz a sua vidinha, é independente, não esbarra com ninguém, come sozinha, faz chichi sozinha... Só não pode ler nem ver televisão, pronto. Pior estão as suas amigas, todas a fazer tijolo, enquanto a senhora anda por cá a comer papinhas de chocolate todas as manhãs.
segunda-feira, 10 de maio de 2021
A ponte
a água correndo escassa
sexta-feira, 22 de maio de 2020
O geógrafo (Vermeer)
Perdi o norte
durante uma chuvada de Maio.
O mundo cheio de pressa,ciganos a arrumarem carroças para partirem.
E eu à procura,
à procura,
o cabelo crivou-se-me de farpas
de palha.
A luz pela janela,
a grossura sem sentido
do vidro...
Só o compasso na minha mão direita
me equilibrava.
Sonhador
passo a passo o sonhador
deixa sumir nas profundas
do abismo um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele.
Sorrindo vai, não lhe importa
perder a bagagem morta.
E de manhã, quando acorda,
já outra margem o chama
e a noite passada é
cotão debaixo da cama.
Outra versão:
O Funâmbulo Sonhador
Sonhador da noite pênsil,
sonhador do Canto IX,
que vais de imagem em imagem
sobre uma corda de sono:
a cada passo que dás,
deixas ficar para trás
um fio, um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele...
Ei-los girando pelo abismo,
minúsculos pontos em chama...
Amanhã hão-de ser só
cotão debaixo da cama.quinta-feira, 30 de abril de 2020
Cão do quintal
há tantos anos deitado
ao lado da laranjeira?
-- Vigio as bermas da estrada,
viajantes à poeira
duma lua esburacada...
Onde será que elas vão?
Deixo-as passar, não lhes ladro,
não quero inquietar o sono
do meu dono.
sábado, 13 de março de 2010
Seis da manhã
Para começar bem o dia,
antes que o dia me veja,
ponho-te aqui de bandeja
a meu lado,
rosto de amor,
extenuado.
Hoje o teu corpo,
onde quer que ele esteja,
vai ter de se erguer sozinho,
respirar sozinho,
sair sozinho,
e tudo lhe vai parecer estranho,
estranha a luz, estranho o tamanho
do caminho.
Café da doca
Dezembro à beira do cais,
Mondego alto, jornais,
e alguém chamando da porta,
casacão de vento em popa,
alma e vapor pela boca.
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Porcelana
Já bebi canja por chávenas,
há chávenas que aturam tudo:
gelo, quentura, pires sujos,
vitrinas, pevides, gripes,
lágrimas, baba em canudo,
tudo,
à espera do dia-não
em que nos caiam ao chão.
Chávenas
nunca a salvo,
todas vêm do desterro
e trazem no aro fino
um óculo cego, um destino,
um erro.
Anjos de uma asa só,
leve penugem de pó.
domingo, 10 de maio de 2009
Regra
Para publicar poemas de amor,
a regra é esperar 5 anos.
Ao fim dos 5 anos,
os que servirem para letras de fado
conservam-se.
Os outros rasgam-se,
muito bem rasgados,
e enterram-se,
mas não pode ser ao pé dum canavial.
domingo, 3 de maio de 2009
Horas
Sou pequena,
finjo que ainda não acordei.
"-- Oito horas",
chama a minha mãe.
O quê? Não quero horas todas juntas,
às oito, às doze,
às dez de cada vez!!
"São horas", repete ela.
Ah, assim está bem.
terça-feira, 28 de abril de 2009
A mula romana
Ofereceu-me o Papa
a Dom Frei Bartolomeu dos Mártires,
arcebispo de Braga.
Fê-lo por graça,
para reunir na mesma imagem
um homem feíssimo
e uma besta fermosa.
Porém, o arcebispo trocou-lhe as voltas.
Traz-me à carga desde manhã até à noite,
a acarretar lenha, pipas, sacas...
Quando me encontra
dá-me palmadinhas,
todo ele balbúrdia,
olhos tortos, pulgas à luta.
Trata-me por vós, por troça,
como se isso me pudesse ofender:
"-- E vós, Águia, cuidáveis
que havíeis de ser cá privilegiada?
Mal vos enganastes,
que na casa do pobre todos são pobres,
e não come senão quem trabalha".
"Cala-te, zarolho!",
respondo-lhe eu em pensamento.
Desmaiar nos trabalhos
não é para corações briosos.
Sou fermosa em passeio
e fermosa em corpo,
fermosa sempre até ao fim,
peça de príncipe.
Águia, mula romana, chegou a Braga na década de 1570. ( Frei Luís de Sousa, A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, introd. de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 636-637). Deve ter sido por essa época que o arcebispo humilhou longamente em público uma paroquiana que assistia a um seu sermão. A mulher saíu da igreja desfeita em lágrimas; mas talvez depois tenha conseguido arranjar dentro de si força para resistir e sobreviver, tal como faz neste poema a mula Águia.
O mais antigo retrato do Arcebispo, datado de 1590:
A caminho de Itália
"Não nos podemos disfarçar,
por mais que façamos",
constatou o capitão Alonso de Contreras
quando o prenderam
vestido de peregrino,
frente às muralhas de Jalons.
Ele não estava a fazer nada de mal,
fitava as corcovas das torres.
Enquanto se defendia à bordoada,
o bordão oco partiu-se,
caíu a espada
escondida lá dentro.
Levaram-no de rastos para a masmorra.
"-- O porco do espanhol é espião!..."
Em caminhos compridos
sempre há descontos
e estrondos.
(Baseado na Vida do Capitão Alonso de Contreras
(1582-1633), Teorema, Lisboa, 2006, p. 117)
Vista antiga de Châlons:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1f/Profil_ville_chalons_jean_boisseau_TGF82_d%27apr%C3%A8s_chastillon.jpg
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Meu amor
sábado, 18 de abril de 2009
terça-feira, 17 de março de 2009
Álea
e à tarde outras três
dúzias de tílias plantadas
ao longo de um cordel esticado,
enquanto o capelão velho vigiava da janela.
Para o jardineiro, soltar aquele cordel
foi soltar a alma: "Ah!"
A mata ao longe, em muralha,
sustentava todo o entardecer.
Caminhando de costas para o palácio,
com a meada de cordel no bolso,
o jardineiro lembrou-se da mulher,
baixinha ciciosa, de roca à cinta.
Ainda antes de ele entrar em casa,
logo que os cães dessem sinal,
ela despejava água quente na selha,
para ele lavar os pés em frente ao lume.
O capelão ainda continuava à janela,
tentando encostar a testa à vidraça
sem encostar também o nariz.
Aquelas tílias durariam séculos,
caso resistissem a incêndios, pragas, nevões,
tropas invasoras
e dívidas de jogo.
A cobra, o milhafre e o boi
de brilho por entre o pasto.
Do alto desce o milhafre,
fugir-lhe é que ela não pode,
ainda não sabe. O chão explode,
No quintal
não são as nêsperas frescas
que atraem vespas,
são as nêsperas do chão.
Por serem doces caíram,
foram tocadas pelo Verão.
sexta-feira, 13 de março de 2009
Almas
e alma de gato a gato,
mas alma de gente cheira
como a do rato a sovaco,
a medo azedo, a buraco.
Passeio à Floresta de Perrault
Lá para trás houve um momento
em que o bosque ensurdeceu
e se fez lento.
Mas nós não demos por nada.
Enganámo-nos na estrada,
estamos na cova dum dente
e o céu quente que nos cobre
é o da boca do Ogre.