Ofereceu-me o Papa
a Dom Frei Bartolomeu dos Mártires,
arcebispo de Braga.
Fê-lo por graça,
para reunir na mesma imagem
um homem feíssimo
e uma besta fermosa.
Porém, o arcebispo trocou-lhe as voltas.
Traz-me à carga desde manhã até à noite,
a acarretar lenha, pipas, sacas...
Quando me encontra
dá-me palmadinhas,
todo ele balbúrdia,
olhos tortos, pulgas à luta.
Trata-me por vós, por troça,
como se isso me pudesse ofender:
"-- E vós, Águia, cuidáveis
que havíeis de ser cá privilegiada?
Mal vos enganastes,
que na casa do pobre todos são pobres,
e não come senão quem trabalha".
"Cala-te, zarolho!",
respondo-lhe eu em pensamento.
Desmaiar nos trabalhos
não é para corações briosos.
Sou fermosa em passeio
e fermosa em corpo,
fermosa sempre até ao fim,
peça de príncipe.
Águia, mula romana, chegou a Braga na década de 1570. ( Frei Luís de Sousa, A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, introd. de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 636-637). Deve ter sido por essa época que o arcebispo humilhou longamente em público uma paroquiana que assistia a um seu sermão. A mulher saíu da igreja desfeita em lágrimas; mas talvez depois tenha conseguido arranjar dentro de si força para resistir e sobreviver, tal como faz neste poema a mula Águia.
O mais antigo retrato do Arcebispo, datado de 1590:
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