domingo, 15 de maio de 2022

Da rua do Convento ao Bairro Novo

Pela Rua do Convento
sobem as velhas para a missa,
cada pêlo uma vibrissa,
saliva aos cantos da beiça,
salve-rainhas em pingo,                                                                                            
às dez da manhã, domingo.
 
A minha avó tem pena delas.
As Ornelas foram ricas,
as Barrosão ainda o são,
a mais baixinha ensina
a doutrina às crianças.
Nenhuma das três Parrancas
casou. Mas muito pior ficou
a Berta Araújo cujo
marido fugiu com outra.
Sabe-se lá se ela passa
necessidades.

As velhas ficam para trás,
a papar missas
e terços de mistério
em mistério,
não vão como nós
ao Bairro Novo,
à pastelaria Império
à procura dum bolo furado
por chantili cor de rosa.
Eu como o bolo
e a minha avó paga,
engolindo em seco de felicidade.
 
Outra versão:


Vão à nossa frente as Seixas  
com as beiças a escorrer
salve-rainhas em pingo
porque é outra vez domingo.
 
A minha avó chama-lhes
"raparigas do meu tempo."
Embicam para o convento,
sobem a custo as escadas.
Bem nascidas, mal fadadas,
coitaditas, com bigodes
frisados à rei Herodes,
missais, malinhas de mão...
A mais velha já foi rica
e a outra já foi bonita,
casada com um capitão
dos barcos do bacalhau.
Upa degrau a degrau
para o alto onde se alcança
toda a bem-aventurança.
 
Quanto à minha avó e eu,
aceleramos, vamos
ao Bairro Novo que é dia
de pastelaria Império
com bolo de creme rosa,
poesia sobre prosa.
O sabor do seu corante
lambido pela rua fora
ainda me dura agora.

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