Maio 2021.
Ao procurar uma ilustração para o poema Na Terra dos Tigres, deparei-me com este tigre emoldurado. Lembrou-me de imediato a minha mãe, que uns dias antes tinha sofrido de alucinações visuais causadas pela perda de visão (síndrome de Charles Bonnet). Este poema é pois dedicado à minha mãe.
só olha em frente à procura
da saída para o passado.
Finge avançar como dantes
mas cola as patas ao chão.
de nenhures para nenhum lado
como o tempo emoldurado.
Jan. 2022
Oito meses depois das primeiras alucinações visuais, a minha mãe já aprendeu a lidar com elas. Diz que não pode dar-lhes confiança. Se acontecem de noite, levanta-se, vai à janela ou então à cozinha beber água; se acontecem de dia, ela inicia uma nova actividade -- melhor ainda, sai de casa, pois fora de casa as alucinações nunca ocorrem.
Ultimamente tem recomeçado a tomar notas no seu caderno diário: saúde, pequenas despesas, telefonemas recebidos, coisas assim. Para conseguir dominar o varrimento da vista, usa grossas linhas pautadas. A tarefa leva-lhe muito tempo, à luz branca fortíssima do candeeiro de mesa.
17 Jul. 2023
13 janeiro 2024
Corrigi mais uma vez o poema "Tigre".
Agora as alucinações da D. Crespo tornaram-se raras. Ela não ousa falar em melhoria. Pode dar azar.
16 para 17 fevereiro- Noite com visões incessantes, "disparates". "Já não sabia o que fazer".
18 fevereiro 2024
No jardim do lar, num intervalo da passeata entre canteiros, a minha mãe tem uma "coisa boa" para me contar: esta madrugada conseguiu ler notícias de jornais, escritas na parede do quarto. Leu-as "nitidamente". Lembra-se por exemplo da palavra "estudantes".
-- Fiquei tão feliz que nem imaginas.
Tenho pena de a desiludir:
-- Mãe, não há jornais na parede do teu quarto...
Ela apercebe-se imediatamente do seu logro.
-- É o teu cérebro a querer consolar-te, é como nos sonhos, mãe, como quando tu ou eu sonhamos com a avó viva.
-- Sonho tantas vezes -- diz ela.
Combinamos que ela não falará a ninguém das suas visões e sonhos, para não correr o risco de a julgarem senil. De mãos dadas, sentimo-nos protegidas por Charles Bonnet, o misericordioso, que inventou um síndrome para nós.
De novo ela passeia entre os canteiros -- e nos intervalos estuda comigo a Balada da Neve, quase rememorizada, após 85 anos de inatividade. Quando não se lembra das palavras exatas, a D. Crespo substitui-as por sinónimos, sem se deixar guiar pela rima. Chamo-lhe sua grande batoteira.
De regresso ao quarto, quer experimentar se consegue ler. Dou-lhe uma embalagem de Halibut. Em várias tentativas, acerta duas letras maiúsculas. Desiste.
- Olhe dona, digo-lhe eu, a senhora conduz o seu Ferrari, anda por aí, faz a sua vidinha, é independente, não esbarra com ninguém, come sozinha, faz chichi sozinha... Só não pode ler nem ver televisão, pronto. Pior estão as suas amigas, todas a fazer tijolo, enquanto a senhora anda por cá a comer papinhas de chocolate todas as manhãs.
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