Metido entre Muito e Pouco,
Assim-assim nunca sabe
quanto lhe cabe.
Dando a volta ao cemitério,
todo aos retalhos, deserto,
as badaladas da tarde
rolam para o mar aberto.Ficam para trás os finados,
de queixadas engasgadas,
assombrados pelo destino.
Que pouco os sossega o sino...
E o girar dos céus serenos
esse ainda os sossega menos.
Entre incensos de churrasco
e foguetes de cerveja,
no alto do seu andor
S. Joãozinho boceja.
Começa a falar sozinho,
ali parado ao calor,
à espera da procissão:
"Então, isto arranca ou não?"...
A seu lado o bom cordeiro
sorri, calado e suave.
"Que cordeiro mais borrego
nem sequer responder sabe!!"
irrita-se o S. João.
Não terá jamais sossego
nem que o caruncho se acabe,
e a culpa é da procissão.
"Então, isto arranca ou não?..."
Pela Rua do Convento
sobem as velhas para a missa,
cada pêlo uma vibrissa,
saliva aos cantos da beiça,
salve-rainhas em pingo,
às dez da manhã, domingo.
A minha avó tem pena delas.
As Ornelas foram ricas,
as Barrosão ainda o são,
a mais baixinha ensina
a doutrina às crianças.
Nenhuma das três Parrancas
casou. Mas muito pior ficou
a Berta Araújo cujo
marido fugiu com outra.
Sabe-se lá se ela passa
necessidades.
As velhas ficam para trás,
a papar missas
e terços de mistério
em mistério,
não vão como nós
ao Bairro Novo,
à pastelaria Império
à procura dum bolo furado
por chantili cor de rosa.
Eu como o bolo
e a minha avó paga,
engolindo em seco de felicidade.
Outra versão:
Vão à nossa frente as Seixas
com as beiças a escorrer
salve-rainhas em pingo
porque é outra vez domingo.
A minha avó chama-lhes
"raparigas do meu tempo."
Embicam para o convento,
sobem a custo as escadas.
Bem nascidas, mal fadadas,
coitaditas, com bigodes
frisados à rei Herodes,
missais, malinhas de mão...
A mais velha já foi rica
e a outra já foi bonita,
casada com um capitão
dos barcos do bacalhau.
Upa degrau a degrau
para o alto onde se alcança
toda a bem-aventurança.
Quanto à minha avó e eu,
aceleramos, vamos
ao Bairro Novo que é dia
de pastelaria Império
com bolo de creme rosa,
poesia sobre prosa.
O sabor do seu corante
lambido pela rua fora
ainda me dura agora.
Ponte velha da Cabreira
onde as cabras velhas vão
na Páscoa por devoção
marchar em fila indiana
(e há sempre uma que lá fica
reservada para chanfana).
Ponte velha da Cabreira,
sobre o rio Ceira, em Góis,
passam os bois dois a dois
e os borregos seis a seis,
a caminho de Coimbra
para se formarem em Leis.
Vão pisando as lajes gastas,
uma a uma até ao fim,
e quando alcançam a estrada
já sabem falar Latim!
A foto é da minha amiga Teresa Relva, o menino é o seu neto Charles.
Blog This and That (relvateresa.blogspot.com)
Pintei-o na parede da minha cozinha. 74x70
18 fevereiro 2024
No jardim do lar, num intervalo da passeata com o Ferrari de 5 rodas, a minha mãe tem uma "coisa boa" para me contar: de madrugada conseguiu ler notícias de jornais, escritas na parede do quarto. Leu-as "nitidamente". Lembra-se por exemplo da palavra "estudantes".
-- Fiquei tão feliz que nem imaginas.
Tenho pena de a desiludir:
-- Mãe, não há jornais na parede do teu quarto...
Ela apercebe-se imediatamente do seu logro.
-- É o teu cérebro a querer consolar-te, é como nos sonhos, mãe, como quando tu ou eu sonhamos com a avó viva.
-- Sonho tantas vezes -- diz ela.
Combinamos que ela não falará a ninguém das suas visões e sonhos, para não correr o risco de a julgarem senil. De mãos dadas, sentimo-nos protegidas por Charles Bonnet, o misericordioso, que inventou um síndrome para nós.
De novo ela passeia entre os canteiros -- e nos intervalos estuda comigo a Balada da Neve, quase rememorizada após 85 anos de inatividade. Quando não se lembra das palavras exatas, a D. Crespo substitui-as por sinónimos, sem se deixar guiar pela rima. Chamo-lhe "sua grande batoteira".
De regresso ao quarto, quer experimentar se consegue ler. Dou-lhe uma embalagem de Halibut. Em várias tentativas, acerta em duas letras maiúsculas. Desiste.
- Olhe, dona-- digo-lhe eu --, a senhora conduz o seu Ferrari, faz a sua vida, é independente, não esbarra com ninguém, come sozinha, faz chichi sozinha... Só não pode ler nem ver televisão, pronto. Pior estão as suas amigas, todas a fazer tijolo enquanto a senhora anda por cá a comer papas de chocolate logo de manhã.
17 junho 2024
A D. Crespo foi-se abaixo no sábado passado. Ao meio dia não a fui encontrar sorridente, sentada à pequena mesa do seu quarto, de popa feita e avental a servir de babete, à espera do almoço que eu lhe traria. Estava encolhida no cadeirão, embrulhada em mantas, sem a dentadura posta (coisa inabitual). Não tinha forças para nada. E ainda parecia mais surda que de costume. Não entendia as coisas que eu lhe dizia ao ouvido, respondia com pedaços de frases desajustadas. Eu agia com calma, mas estava apavorada.
Quando voltei, à tarde, a D. Crespo já estava um pouco melhor. Tinha tido a sua sessão de massagem para bebé -- simples movimentos suaves, repetidos por todas as zonas dolorosas do seu corpo, terminando no rosto numa epifania de salão de beleza. A massagista não é profissional, é apenas uma empregada doméstica que faz horas extra. Uma pessoa boa.
No domingo, a D. Crespo já circulava de novo no corredor. Estava só constipada. A sua pobre silhueta hesitante, vista de trás, desolava-me.
Hoje, segunda-feira, estando ela em forma após mais uma sessão de massagens, reensaiámos o "Sonho que sou um cavaleiro andante". Difícil. Alguns versos esboroavam-se, afocinhavam, afundavam-se e a D. Crespo tinha de saltar sobre o vácuo para alcançar os outros versos que já iam lá para a frente. Mesmo assim, gostou de declamar o soneto. Muito animada pela ideia de ir comer ao jantar o requeijão e ovo cozido que eu lhe trouxera.
Saí deixando-a a fazer mais um circuito no autódromo do corredor. Cá fora choviscava. Esperei pelo autocarro sentada num degrau, em riscos de sujar as minhas calças brancas.
De volta a casa, surpresa: interior morno como se houvesse aquecimento central!
Perdi o norte
durante uma chuvada de Maio.
O mundo cheio de pressa,ciganos a arrumarem carroças para partirem.
E eu à procura,
à procura,
o cabelo crivou-se-me de farpas
de palha.
A luz pela janela,
a grossura sem sentido
do vidro...
Só o compasso na minha mão direita
me equilibrava.
passo a passo o sonhador
deixa sumir nas profundas
do abismo um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele.
Sorrindo vai, não lhe importa
perder a bagagem morta.
E de manhã, quando acorda,
já outra margem o chama
e a noite passada é
cotão debaixo da cama.
Outra versão:
O Funâmbulo Sonhador
Sonhador da noite pênsil,
sonhador do Canto IX,
que vais de imagem em imagem
sobre uma corda de sono:
a cada passo que dás,
deixas ficar para trás
um fio, um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele...
Ei-los girando pelo abismo,
minúsculos pontos em chama...
Amanhã hão-de ser só
cotão debaixo da cama.Para começar bem o dia,
antes que o dia me veja,
ponho-te aqui de bandeja
a meu lado,
rosto de amor,
extenuado.
Hoje o teu corpo,
onde quer que ele esteja,
vai ter de se erguer sozinho,
respirar sozinho,
sair sozinho,
e tudo lhe vai parecer estranho,
estranha a luz, estranho o tamanho
do caminho.
Dezembro à beira do cais,
Mondego alto, jornais,
e alguém chamando da porta,
casacão de vento em popa,
alma e vapor pela boca.
Já bebi canja por chávenas,
há chávenas que aturam tudo:
gelo, quentura, pires sujos,
vitrinas, pevides, gripes,
lágrimas, baba em canudo,
tudo,
à espera do dia-não
em que nos caiam ao chão.
Para publicar poemas de amor,
a regra é esperar 5 anos.
Ao fim dos 5 anos,
os que servirem para letras de fado
conservam-se.
Os outros rasgam-se,
muito bem rasgados,
e enterram-se,
mas não pode ser ao pé dum canavial.
Sou pequena,
finjo que ainda não acordei.
"-- Oito horas",
chama a minha mãe.
O quê? Não quero horas todas juntas,
às oito, às doze,
às dez de cada vez!!
"São horas", repete ela.
Ah, assim está bem.
Ofereceu-me o Papa
a Dom Frei Bartolomeu dos Mártires,
arcebispo de Braga.
Fê-lo por graça,
para reunir na mesma imagem
um homem feíssimo
e uma besta fermosa.
Porém, o arcebispo trocou-lhe as voltas.
Traz-me à carga desde manhã até à noite,
a acarretar lenha, pipas, sacas...
Quando me encontra
dá-me palmadinhas,
todo ele balbúrdia,
olhos tortos, pulgas à luta.
Trata-me por vós, por troça,
como se isso me pudesse ofender:
"-- E vós, Águia, cuidáveis
que havíeis de ser cá privilegiada?
Mal vos enganastes,
que na casa do pobre todos são pobres,
e não come senão quem trabalha".
"Cala-te, zarolho!",
respondo-lhe eu em pensamento.
Desmaiar nos trabalhos
não é para corações briosos.
Sou fermosa em passeio
e fermosa em corpo,
fermosa sempre até ao fim,
peça de príncipe.
Águia, mula romana, chegou a Braga na década de 1570. ( Frei Luís de Sousa, A vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, introd. de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 636-637). Deve ter sido por essa época que o arcebispo humilhou longamente em público uma paroquiana que assistia a um seu sermão. A mulher saíu da igreja desfeita em lágrimas; mas talvez depois tenha conseguido arranjar dentro de si força para resistir e sobreviver, tal como faz neste poema a mula Águia.
O mais antigo retrato do Arcebispo, datado de 1590:
"Não nos podemos disfarçar,
por mais que façamos",
constatou o capitão Alonso de Contreras
quando o prenderam
vestido de peregrino,
frente às muralhas de Jalons.
Ele não estava a fazer nada de mal,
fitava as corcovas das torres.
Enquanto se defendia à bordoada,
o bordão oco partiu-se,
caíu a espada
escondida lá dentro.
Levaram-no de rastos para a masmorra.
"-- O porco do espanhol é espião!..."
Em caminhos compridos
sempre há descontos
e estrondos.
(Baseado na Vida do Capitão Alonso de Contreras
(1582-1633), Teorema, Lisboa, 2006, p. 117)
Vista antiga de Châlons:
Lá para trás houve um momento
em que o bosque ensurdeceu
e se fez lento.
Mas nós não demos por nada.
Enganámo-nos na estrada,
estamos na cova dum dente
e o céu quente que nos cobre
é o da boca do Ogre.