Tigre marchant vers la droite, Alexandre-François Desportes (1661-1743)
Maio 2021.
Ao procurar uma ilustração para o poema Na Terra dos Tigres, deparei-me com este tigre emoldurado. Lembrou-me de imediato a minha mãe, que uns dias antes tinha sofrido de alucinações visuais causadas pela perda de visão (síndrome de Charles Bonnet). Este poema é pois dedicado à minha mãe.
Tigre preso na moldura
e com o rabo entalado
só olha em frente à procura
da saída para o passado.
Finge avançar como dantes
mas cola as patas ao chão.
Nada pode, está cercado
por imagens delirantes.
Que susto surdo lhe dão,
a escorrerem pelas paredes
de nenhures para nenhum lado
como o tempo emoldurado.
Jan. 2022
Oito meses depois das primeiras alucinações visuais, a minha mãe já aprendeu a lidar com elas. Diz que não pode dar-lhes confiança. Se acontecem de noite, levanta-se, vai à janela ou então à cozinha beber água; se acontecem de dia, ela inicia uma nova actividade -- melhor ainda, sai de casa, pois fora de casa as alucinações nunca ocorrem.
Ultimamente tem recomeçado a tomar notas no seu caderno diário: saúde, pequenas despesas, telefonemas recebidos, coisas assim. Para conseguir dominar o varrimento da vista, usa grossas linhas pautadas. A tarefa leva-lhe muito tempo, à luz branca fortíssima do candeeiro de mesa.
17 Jul. 2023
A minha mãe está internada num lar, depois de no ano passado ter dado uma queda e ter sido operada. Moro perto, posso visitá-la todos os dias, tornámo-nos tão próximas como quando eu era uma menina a aprender a andar.
Ela adaptou-se bastante bem à sua nova vida. De cá para lá no corredor, a manobrar o andarilho de 5 rodas... Alguns empregados chamam-lhe carinhosamente "Dona Crespo". Vou passar a referir-me a ela com esse nome.
A D. Crespo já desistiu de ver televisão. No entanto é suficientemente rija para voltar a tentar escrever. Recentemente conseguiu assinar o seu nome no notário, sem se dar conta de que cada um dos seus apelidos singrava tacteando para o alto da página. No final, depois de todas as pessoas presentes a felicitarem, foi ao café beber uma água das Pedras.
13 janeiro 2024
Corrigi mais uma vez o poema "Tigre".
Agora as alucinações da D. Crespo tornaram-se raras. Ela não ousa falar em melhoria. "Até pode dar azar."
16 para 17 fevereiro- Noite com visões incessantes, "disparates". "Já não sabia o que fazer".
18 fevereiro 2024
No jardim do lar, num intervalo da passeata com o Ferrari de 5 rodas, a minha mãe tem uma "coisa boa" para me contar: de madrugada conseguiu ler notícias de jornais, escritas na parede do quarto. Leu-as "nitidamente". Lembra-se por exemplo da palavra "estudantes".
-- Fiquei tão feliz que nem imaginas.
Tenho pena de a desiludir:
-- Mãe, não há jornais na parede do teu quarto...
Ela apercebe-se imediatamente do seu logro.
-- É o teu cérebro a querer consolar-te, é como nos sonhos, mãe, como quando tu ou eu sonhamos com a avó viva.
-- Sonho tantas vezes -- diz ela.
Combinamos que ela não falará a ninguém das suas visões e sonhos, para não correr o risco de a julgarem senil. De mãos dadas, sentimo-nos protegidas por Charles Bonnet, o misericordioso, que inventou um síndrome para nós.
De novo ela passeia entre os canteiros -- e nos intervalos estuda comigo a Balada da Neve, quase rememorizada após 85 anos de inatividade. Quando não se lembra das palavras exatas, a D. Crespo substitui-as por sinónimos, sem se deixar guiar pela rima. Chamo-lhe "sua grande batoteira".
De regresso ao quarto, quer experimentar se consegue ler. Dou-lhe uma embalagem de Halibut. Em várias tentativas, acerta em duas letras maiúsculas. Desiste.
- Olhe, dona-- digo-lhe eu --, a senhora conduz o seu Ferrari, faz a sua vida, é independente, não esbarra com ninguém, come sozinha, faz chichi sozinha... Só não pode ler nem ver televisão, pronto. Pior estão as suas amigas, todas a fazer tijolo enquanto a senhora anda por cá a comer papas de chocolate logo de manhã.
17 junho 2024
A D. Crespo foi-se abaixo no sábado passado. Ao meio dia não a fui encontrar sorridente, sentada à pequena mesa do seu quarto, de popa feita e avental a servir de babete, à espera do almoço que eu lhe traria. Estava encolhida no cadeirão, embrulhada em mantas, sem a dentadura posta (coisa inabitual). Não tinha forças para nada. E ainda parecia mais surda que de costume. Não entendia as coisas que eu lhe dizia ao ouvido, respondia com pedaços de frases desajustadas. Eu agia com calma, mas estava apavorada.
Quando voltei, à tarde, a D. Crespo já estava um pouco melhor. Tinha tido a sua sessão de massagem para bebé -- simples movimentos suaves, repetidos por todas as zonas dolorosas do seu corpo, terminando no rosto numa epifania de salão de beleza. A massagista não é profissional, é apenas uma empregada doméstica que faz horas extra. Uma pessoa boa.
No domingo, a D. Crespo já circulava de novo no corredor. Estava só constipada. A sua pobre silhueta hesitante, vista de trás, desolava-me.
Hoje, segunda-feira, estando ela em forma após mais uma sessão de massagens, reensaiámos o "Sonho que sou um cavaleiro andante". Difícil. Alguns versos esboroavam-se, afocinhavam, afundavam-se e a D. Crespo tinha de saltar sobre o vácuo para alcançar os outros versos que já iam lá para a frente. Mesmo assim, gostou de declamar o soneto. Muito animada pela ideia de ir comer ao jantar o requeijão e ovo cozido que eu lhe trouxera.
Saí deixando-a a fazer mais um circuito no autódromo do corredor. Cá fora choviscava. Esperei pelo autocarro sentada num degrau, em riscos de sujar as minhas calças brancas.
De volta a casa, surpresa: interior morno como se houvesse aquecimento central!